OS FILÓSOFOS
Há dois milênios e meio o mundo era um lugar atribulado. Mercadores negociavam por toda a Ásia até o Mediterrâneo e em direção ao Ocidente, direto para a costa da Grã Bretanha. Algumas pessoas nunca saíram da vila onde nasceram; para os que gostavam de viajar, entretanto, as oportunidades eram inúmeras, e junto com as caravanas e os navios de comércio iam também as ideias, movendo-se através das culturas com liberdade estonteante. E foi assim que a tradição dos Mistérios Ocidentais absorveu sabedoria das culturas orientais, transmitida pelos antigos filósofos gregos.
"O caminho para cima é o caminho para baixo"
(Heráclito)
Pitágoras e Seu Povo
O conhecimento dos Mistérios encontrou-se com a Filosofia por meio do trabalho de vários dos mais influentes pensadores da Antiguidade, homens que, pela primeira vez no mundo ocidental, se perguntavam sobre a natureza física do cosmos e a natureza espiritual da alma. Seu trabalho marca o início não só das ciências físicas, como a Biologia, a Física e a Astronomia, como também do estudo da mente e dos processos de pensamento. Eles faziam uso da razão e da lógica para chegar a conclusões, e também se baseavam no conhecimento diretamente intuitivo dos Mistérios: não havia divisão entre esses dois modos de pensamento. Um dos primeiros desses pensadores, Pitágoras, forjou a palavra "filósofo", que significa "aquele que ama a sabedoria".
Aqui precisamos esquecer o sentido moderno de filosofia. No mundo antigo, a palavra possuía um sentido muito mais vasto do que tem hoje em dia, pois se considerava que a sabedoria poderia ser obtida a partir de várias disciplinas esotéricas. Pitágoras e seus colegas filósofos não eram apenas pensadores, mas curadores, magos e xamãs. Eles viviam com base em crenças espirituais, como eremitas ou cercados de devotos, e eram temidos e respeitados. Mesmo Sócrates, que normalmente é apresentado como alguém conduzido pela razão, obedecia ao poder de um espírito guia e, em momentos críticos da vida, encontrou sentido nos Mistérios. A Grécia antiga era um lugar bem mais mágico do que se poderia suspeitar.
Tudo começa com Pitágoras, o primeiro dos gurus históricos ocidentais. Embora pareçamos saber bastante a seu respeito, grande parte do material é lendário, o que não deixa de ser significativo. Ele nasceu na Ilha de Samos, perto do que é hoje se conhece como costa da Turquia, por volta de 580-570 a.C.. Conta-se que fez seus estudos em templos egípcios, e que também visitou os templos de Tiro e Biblos, a mais antiga cidade habitada do mundo. Portanto sua sabedoria era baseada nas mais antigas fontes disponíveis. Pitágoras emigrou para Crotona, ao sul da Itália, onde juntou em torno de si um grupo de seguidores devotados à sabedoria oculta que ele havia aprendido. Os pitagóricos parecem ter sido bastante similares aos órficos; tão similares, na verdade, que escreviam poemas que eles mesmos atribuíam a Orfeu.
Pitágoras e seus discípulos pareciam inspirar, inicialmente, considerável respeito. Os cidadãos de Crotona respondiam bem às sugestões de Pitágoras de que deveriam ter uma vida mais moral, mas esse feliz estado de coisas não durou muito. No fim das contas, armou-se uma trama para Pitágoras e ele teve de fugir para Metaponto, onde morreu já bem idoso. Segundo a lenda ele foi morto por um raio, o que, para os gregos antigos, era considerado uma morte sobrenatural. Mesmo durante a vida, alguns seguidores o consideravam uma encarnação do deus Apolo. Ele era, aparentemente, muito bonito, e sua pele reluzia com brilho dourado; diz-se exatamente o mesmo de Buda.
Assim como faziam voto de silêncio os iniciados dos Mistérios Órficos e de Elêusis, os pitagóricos também cercavam de segredo suas crenças e práticas. Sabemos, entretanto, algumas coisas de seu modo de vida. Talvez o aspecto mais espantoso da sociedade pitagórica fosse o fato de as mulheres serem tratadas em pé de igualdade aos homens; atitude diametralmente oposta à prática predominantemente na Grécia, em que as mulheres não passavam de cidadãs de segunda classe. Conta-se que a própria esposa de Pitágoras, Theano, escreveu de forma vasta sobre a matemática e outros assuntos.
A amizade era tão valorizada que existem histórias sobre pitagóricos que ofereceram a própria vida em troca daquela de seus seguidores. Os pitagóricos eram capazes de se reconhecer e, portanto, ajudar uns aos outros utilizando o pentagrama como sinal secreto. Eles cultuavam e comiam juntos, e ao que parece tinham propriedades em comum. Não comiam carne: a dieta sem carne foi conhecida como "pitagórica" até que a palavra "vegetariano" passou a ser usada no século XIX. Fazia-se uso considerável da música para curas e rituais. À noite, cada pitagórico meditava sobre os eventos do dia e examinava sua consciência, jurando reparar quaisquer faltas ou deveres não cumpridos. A regra geral era seguir um caminho intermediário entre todas as coisas, evitando tanto os excessos quanto o ascetismo. Conta-se que eles se atinham à verdade em todas as situações, ensino que Pitágoras trouxera da Babilônia. Esse modo de vida parece ter sido um método de levar os votos órficos de moralidade um passo adiante, intensificando sua aplicação ao viverem em um grupo separado da sociedade mundana, assim como no caso de um monastério ou de um convento.
Unindo-se ao Círculo Pitagórico
Como era juntar-se aos pitagóricos? Primeiro o aspirante fazia voto de silêncio, o echemythia, válido por três anos. Então, tornava-se membro de um círculo externo de pitagóricos, os ouvintes, ou akousmatikoi. Nesse estágio introdutório, ele recebia ensinamentos básicos de moralidade e uma série de versos enigmáticos e motes sobre os quais deveriam meditar. Entre estes havia a famosa ordem de não comer feijões, à qual foram dadas várias interpretações. Algumas acreditavam que, uma vez que os votos eram contados utilizando-se grãos de feijão, isso era uma referência à abstenção da política partidária. Outra interpretação, talvez mais provável, é que alguns alimentos fossem proibidos por motivos de purificação prévia à realização dos rituais, de forma que a pessoa pudesse ter sonhos proféticos. A prática de se abster de determinados alimentos, como cebola e alho, antes de receber as iniciações ainda ocorre em algumas tradições do Oriente.
Os akousmatikoi eram livres para sair da ordem caso decidissem, e essa talvez seja uma das razões pelas quais o ensinamento que recebiam era transmitido de forma obscura, fazendo pouco sentido para as pessoas de fora. Por exemplo, a frase pitagórica "Quando os ventos soprarem venere o som" é explicada pelo filósofo Neoplatônico Porfírio (305-233 a.C.) como uma exortação à veneração do espírito divino. Se o neófito permanecesse dentro da ordem, poderia prosseguir ao próximo nível, o dos mathematikoi. Nesse ponto, o próprio Pitágoras transmitiria os ensinamentos, desdobrando o sentido da matemática.
E o que Pitágoras ensinava? Ele é, assim como Orfeu, associado à música, baseava no estudo da matemática. Ambos os assuntos são imbuídos de sentidos místicos. De acordo com Pitágoras, a vida teria se originado de rurhmos, ritmo os harmonia. O que subjaz ao universo é um vazio infinito, ou apeiron. Esse vazio misteriosamente penetra o mundo da forma, ou peiron, e ambos se combinam e recombinam em várias proporções para criar as formas de vida. Esse processo é chamado "harmonia", e não é aleatório, pois elementos de existência dissimilar precisam ser unidos em proporção harmoniosa para existirem de forma bem sucedida, ou simplesmente não existirão. O exemplo supremo de harmonia é a precisão perfeita com que as estrelas e planetas se movem nos céus; é a "harmonia das esferas", que Pitágoras alegava ser capaz de escultar.
Todas as formas de vida estão, portanto, conectadas em um estado constante de evolução ou involução a formas mais complexas ou mais simples. o ditado pitagórico que diz "As coisas são número, é a harmonia que as une" expressa esse ensinamento básico. O universo é um todo complexo, uma harmonia vivente na qual o número não é apenas símbolo de quantidade, mas produz verdadeiros organismos vivos por meio da combinação de elementos. A realidade absoluta pode, portanto, ser expressa em termos matemáticos.
Não é possível estudar Pitágoras sem mencionar o famoso teorema dele sobre triângulos retângulos. Nesse contexto, é significativo que o teorema fosse conhecido na Babilônia e na Índia séculos antes de ganhar o nome de Pitágoras, o que aconteceu alguns séculos após sua morte. embora não seja possível saber onde ou quando ele teve contato com o teorema, esse conhecimento certamente atesta sua compreensão da matemática e pode apoiar a tradição segundo a qual ele obteve aprendizado místico na Ásia.
o simbolismo numérico de Pitágorasn incluía alguns diagramas aparentemente simples. o primeiro é a Mônada, um círculo com um ponto no meio. simbolizava o princípio divino uno a partir do qual flui toda a criação. A forma pela qual a criação se desdobra é representada pelo Quaternário, um triângulo equilátero em cujo interior está um ponto no vórtice superior, dois pontos abaixo deste, depois três pontos e, finalmente, quatro pontos. O ponto único da Mônada divide-se em dois, representando uma superfície unidimensional (uma reta ligando dois pontos). Segue-se a isso uma linha de três pontos representando duas dimensões (um imaginário entre três pontos). Por fim, os quatro pontos simbolizam uma figura tridimensional de quatro lados, ou tetraedro. Essa progressão sugere o processo da criação expresso em termos matemáticos. Diz-se que os primeiros quatro números representam a música das esferas, e as razões são as escalas dos intervalos musicais básicos: 1:2 é a oitava, 2:3 é a quinta perfeita e 3:4 é a quarta perfeita. O número de pontos no diagrama é dez, número que representa a completude, uma vez que todos os números acima de dez são combinações dos primeiros nove números.
Há outros modos de interpretar o Quaternário. Na medida em que ele mostra a progressão da vida, da unidade divina até a criação múltipla, contém também a chave do retorno ao Dvino. Os Pitagóricos não fundaram uma ordem simplesmente para praticar um estilo de vida ético: se assim fosse, não haveria necessidade de manter segredo. Eles eram uma ordem religiosa, e tinham como objetivo viver uma vida que expressasse a divindade interior. O Quartenário era talvez seu símbolo mais sagrado, e o julgamento solene era: "Juro por aquele que transmitiu à nossa alma o Quartenário, a raiz perene da fonte da natureza".
A expressão "raiz perene da natureza" nos dá uma indicação do caráter da missão religiosa dos pitagóricos. Eles acreditavam que a vida passava de forma a forma em um constante processo de transmigração. O próprio Ferécides, professor de Pitágoras, era considerado o primeiro a falar da imortalidade da alma e da reencarnação por meio de diferentes formas de vida. De acordo com sua doutrina, a alma nunca morre, mas, vida após vida, toma várias formas assim como a cera toma a forma de qualquer de qualquer selo que nela for impresso. Não é de se espantar, portanto, que os pitagóricos praticassem o vegetarianismo, pois os animais poderiam estar abrigando almas que outrora haviam sido seres humanos. Conta-se que o próprio Pitágoras fora capaz de lembrar-se de suas vidas anteriores e que era capaz de reconhecer, no latido de um cachorro, a alma torturada que outrora fora um ser humano. Um ditado pitagórico era "Tudo muda, mas nunca deixa de existir".
A força propulsora por trás desse fluxo constante de vida é simplesmente a necessidade de causa e efeito. E é nesse ponto que entra a parte ética do estilo de vida pitagórico. Assim como os órficos, os pitagóricos sentiam que a alma deveria ser purificada. Uma pessoa comum sofreria os efeitos das más ações reencarnando num corpo inferior, ao passo que um pitagórico purificado mereceria uma boa reencarnação. Mas esse não era o propósito final: nenhum pitagórico deseja ser enclausurado em uma série infindável de renascimentos: o objetivo era reascender misticamente o Quaternário até chegar à Mônada, onde se alcançaria a união com Deus. Já que toda vida havia surgido da Mônada, ela retinha parte das qualidades divinas e poderia, portanto, reunir-se à fonte. Este é, com efeito, o mesmo raciocínio embutido no mito Órfico sobre a morte de Dionísio. Tal profunda crença ou ou percepção religiosa iria depois reverberar através das eras em vários formatos de misticismo, desde o Gnosticismo até a ordem mágica da Aurora Dourada.
Os Ensinos Pitagóricos
Não é possível saber quais eram as práticas internas do matematikoi, pois eram mantidas estritamente em segredo. porém, somos capazes de especular ser provável que as iniciações e ensinamentos transmitidos aos akousmatikoi serviam de purificação, permitindo-lhes receber ensinamentos mais profundos e meditativos. Sabemos que os pitagóricos possuíam a reputação de serem sábios, e já que os pitagóricos eram as únicas pessoas a tratar as mulheres como iguais, Platão provavelmente se referia a eles ao mencionar os "homens e mulheres sábios".
A música pode ter tido papel essencial nas iniciações e práticas secretas. Pitágoras ensinava que o universo desenvolvera-se e era mantido coeso por causa da harmonia. Conta-se que ele descobriu a escala musical ao pendurar babantes em uma parede, amarrando pesos a eles em intervalos específicos, e depois os dedilhar. Dessa forma, ele descobriu que a harmonia é matemáticamente determinada, verdade que também é expressa no Quartenário. Embora esse relato seja provavelmente apócrifo, sem dúvida sugere o ensinamento que Pitágoras desenvolveu a partir de sua investigação da matemática musical. Assim como Orfeu, supõe-se que ele foi capaz de acalmar tanto seres humanos como animais ao tocar sua lira. É certo que os pitagóricos usavam a música para harmonizar a si mesmos com os acordes e ritmos universais, acalmando as paixões e inspirando-os em sua empreitada espiritual. A dança pode também ter sido usada da mesma forma, assim como a dança rodopiante Sufi.
Ferécides, professor de Pitágoras, era um astrólogo conhecido por escrever bastante sobre o assunto, e é provável que tenha sido ele a transmitir tais conhecimentos a Pitágoras. Como veremos pouco à frente, Platão que em muito se baseou nos ensinamentos pitagóricos, utilizava a Astrologia em sua descrição da criação do universo. Podemos especular que Pitágoras também ensinou seus discípulos a utilizar a Astrologia para se harmonizarem com o cosmos, para "se deixarem levar", como diz a frase mais moderna. O encantador mundo dos pitagóricos era construído sobre harmonia, canções inspiradoras, amizade e igualdade. Embora tivessem aprendido muito com a sabedoria órfica, não parecia haver mitos com mortes e desmembramento envolvidos. Isso não significa que as iniciações não incluíssem elementos assustadores como aqueles de ambos os Mistérios órficos e eleusinos. De fato, parece que as iniciações pitagóricas envolviam a entrada em uma caverna escura, seguidas de dramáticas exposições a luz e som. Em outras palavras, exigia-se que o iniciado passasse pela experiência da morte para renascer, assim como nas primeiras iniciações. A diferença: ele faria parte de uma ordem que oferecia apoio físico e emocional, mas também ensinamentos regulares e graduais. Os pitagóricos foram a primeira comunidade religiosa desse tipo no mundo ocidental, o protótipo de todas as comunidades montadas para os que desejam verdadeiramente devotar-se à vida espiritual.
Essas pessoas pacíficas tiveram impacto inestimável no desenvolvimento da espiritualidade ocidental. É só olhar em volta para perceber traços de sua presença nos lugares mais surpreendentes. Por exemplo: a insígnia heráldica no brasão de um arcebispo incluía um chapéu verde ornado com dois conjuntos de sinetas, cada um formando um Quaternário. É comum ver chapéus sobre os túmulos de arcebispos. Não se sabe se os arcebispos cristãos de nossa época conhecem tal simbolismo, mas, como veremos em um capítulo mais à frente, houve períodos na história em que homens da Igreja vasculhavam com entusiasmo o passado místico pagão para enriquecer seu desenvolvimento espiritual.
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